Há 70 anos foi libertado o campo de concentração mais associado ao extermínio dos judeus pelo regime nazi. Mas demorou anos até haver uma compreensão generalizada de que os judeus tinham sido vítimas de um genocídio.
O Exército Vermelho não estava preparado para libertar
Auschwitz.
Nos seus mapas, de
antes da guerra, nem sequer constava este extenso campo de morte e de trabalhos
forçados do regime Nazista. “Demos por acaso com o campo de extermínio”,
recordou o tenente Vasili Gromadski, da 100.ª Divisão de Atiradores, que
participava na ofensiva do Vístula-Oder, que havia de chegar a Berlim no fim de
Abril de 1945.
Quando entraram em Auschwitz, a 27 de Janeiro de 1945,
encontraram um local onde foram mortas 1,5 milhões de pessoas e que se tornou
num testemunho da crueldade Nazista, mas que só ao longo dos anos se
transformou num símbolo do Holocausto dos judeus.
“Vi muitas coisas horríveis e de pesadelo nesta guerra, mas
o que testemunhei em Auschwitz ultrapassa a imaginação”, escreveu o militar
soviético Georgi Elisavestski numa carta à mulher, quando já era comandante do
campo, depois do Exército Vermelho ter assumido o controlo.
“Imagina um complexo prisional, rodeado por campos mais
pequenos, com capacidade para 60 mil a 80 mil pessoas, vindas de toda a parte
do mundo. Ver o estado das pessoas que aqui ficaram – e compreender o que se
passou aqui – é suficiente para perder o juízo”, confessava Elisavestski,
citado no livro Total War – From Stalingrad to Berlin, de Michael Jones (John
Murray, 2011). “Encontrámos as ruínas de quatro fornos crematórios, com
capacidade para queimar milhares de pessoas diariamente”, relatava o oficial.
“Traziam os prisioneiros para o que chamavam ‘descontaminação.’ Forçavam-nos a
despir-se e a ir para uma sala na cave, onde havia chuveiros. Quando estava
cheia, fechavam as portas e lançavam gás. Após 10-15 minutos, traziam os
cadáveres para os crematórios."
O que o Exército Vermelho encontrou ao entrar em Auschwitz,
após enfrentar feroz resistência Nazista – o campo era secreto, e era segredo
de Estado o que o regime estava a fazer aos judeus –, chocou soldados que
pensavam já não poder ser surpreendidos. Além de pessoas que eram apenas
esqueletos, crianças usadas para experiências científicas, descobriram
toneladas de cabelo humano – para usar na indústria têxtil – e de roupa,
sapatos e objectos pessoais em ouro, que incluíam dentes, que seriam enviados
para a Alemanha. Eram coisas que punham os soldados a chorar. “Tinha visto
pessoas enforcadas, pessoas queimadas. Mesmo assim não estava preparado para
Auschwitz…”, recordou Anatoli Shapiro, comandante do 1085.º Regimento do Exército
Vermelho, o primeiro a entrar no campo.
“Vimos logo as fileiras de casernas. Abri a porta de uma. O
fedor era insuportável. Era uma caserna feminina, e havia poças de sangue
congeladas no chão, e cadáveres no chão. E lá pelo meio havia ainda pessoas
vivas, seminuas, vestidas só com roupa interior fina – em Janeiro! Os meus
soldados recuaram, horrorizados. Um deles disse: ‘Não consigo suportar isto.
Vamos sair daqui. Isto é inacreditável!’”
Mas os soldados insistiram, continuaram a abrir as casernas
e a descobrir “pessoas emaciadas, brutalmente torturadas”, na descrição do
tenente Ivan Martinushkin. “Já não pareciam pessoas”, disse o sargento Genri
Koptev. “Tinham uma pele tão fina que se podia ver as veias e os olhos estavam
salientes, porque os tecidos à volta tinham desaparecido. Quando esticavam as
mãos, podia-se ver cada osso, cada tendão e articulação. Sentimo-nos tomados
pelo terror. Ninguém nos tinha preparado para isto.”
Ninguém acreditava
Na verdade, ninguém estava preparado para Auschwitz.
Estaline, o líder soviético, teria informação sobre o que ali se passava desde
o ano anterior, quando o Exército Vermelho tomou o campo de extermínio de
Madjanek, um dos locais onde começou a ser posta em prática, em 1942, a
“solução final” para a “questão judaica. Este eufemismo designa o extermínio,
puro e simples, de todos os judeus. Mas o líder comunista não disse nada sobre
Auschwitz ao marechal Ivan Konev, que liderava a I Frente Ucraniana, o exército
que tomou o campo.
A narrativa oficial da história soviética da II Guerra
impunha o dogma de que a nação russa fora a mais sacrificada, a maior vítima e
a maior vencedora, no seio da URSS, afirma o historiador norte-americano
Timothy Snyder no livro Terra Sangrenta – A Europa entre Hitler e Estaline (Bertrand,
2011).
O resto dos Aliados e os líderes mundiais olhavam a guerra
como um todo. As informações sobre os campos de concentração eram escassas e
classificadas ao nível de boatos. As chancelarias e a imprensa estavam de pé
atrás por causa dos abusos da propaganda na I Guerra Mundial.
A imprensa também não destacava o massacre dos judeus.
Laurel Leff, investigadora da Northeastern University (Boston), analisou a
cobertura do New York Times sobre o Holocausto no livro Burried by the Times e,
em tom acusatório, concluiu que o jornal arrumou as notícias nas últimas
páginas, com pouco destaque e pouca análise. Só seis vezes em quase seis anos é
que uma notícia sobre este assunto teve chamada de primeira página e apenas uma
vez foi tema de editorial. O resultado foi a falta de consciência nos países
aliados da gravidade dos massacres de que eram alvo os judeus.
Mas o anti-semitismo não era exclusivo dos Nazistas. “Muita
gente, e não apenas na Alemanha, via os judeus como uma influência maligna e
queria destruir o seu poder, ou pensava que formavam grupos poderosos que
geriam os grandes negócios”, explicou o historiador britânico e biógrafo de
Hitler Ian Kershaw, numa entrevista disponível no site http://ww2history.com/,
criado por Laurence Rees, autor de documentários sobre a II Guerra para a BBC.
Em meados de 1942, chegou aos Aliados o relatório, então
anónimo, de um empresário alemão, Gerhard Riegner, que falava de uma campanha
de assassínio em massa nos territórios conquistados no Leste da Europa. Mas com
avisos quanto à sua veracidade: dizia também que os judeus estavam a ser
transformados em sabão.
“Operação Reinhardt”
O relatório Riegner alertava na verdade para a operação
Reinhardt, lançada quando Hitler deu luz verde à “solução final”, face à
entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial. “Os judeus arcavam agora com a
culpa pelo desastre indizível que se aproximava”, escreve Timothy Snyder em
Terra Sangrenta. O objectivo era acabar de vez com os judeus que viviam nos territórios
ocupados pelos Nazistas, em especial na Polónia, onde vivia a maior comunidade.
“Todos acreditavam, caso aceitassem o ponto de vista de
Hitler, que na última guerra mundial a Alemanha não tinha sido derrotada no
campo de batalha mas, em vez disso, derrubada por ‘uma ‘facada nas costas’, uma
conspiração de judeus e outros inimigos internos. Agora os judeus também
arcavam com as culpas pela aliança americano-britânico-soviética. Uma tal
‘frente comum’ de capitalistas e comunistas, prosseguia o raciocínio de Hitler,
só podia ter sido realizada graças às cabalas judaicas”, descreve o
historiador.
A ordem era para que tudo se passasse no maior segredo. Em
vários campos de extermínio – Treblinka, Sobibor, Madjanek, Chelmo, Belzec –
foram mortos a partir de meados de 1942 cerca de 1,5 milhões de judeus. Eram
verdadeiras fábricas de morte, onde em apenas duas horas as pessoas podiam ser
liquidadas, utilizando monóxido de carbono. Só em Treblinka terão morrido
780.863 pessoas. Mas deixaram de funcionar antes de Auschwitz se transformar em
local de extermínio, onde se usava um gás à base de cianeto, desenvolvido pela
empresa IG Farben, que tinha fábricas junto ao campo, onde beneficiava do
trabalho escravo.
No entanto, quando se iniciou a operação Reinhardt, já mais
de 1,5 milhões de judeus tinham sido mortos por balas na Polónia e em
territórios da União Soviética, como a Bielorrússia e os países bálticos,
sublinha Timothy Snyder. O mais conhecido é o da ravina de Babi Yar, nos
arredores de Kiev, na Ucrânia: em 29 e 30 de Setembro de 1941, mais de 33 mil
judeus ucranianos foram ali fuzilados.
“Tendo entregado os seus valores e documentos, as pessoas
foram obrigadas a despir-se, e depois empurradas, sob ameaças e tiros para o
ar, em grupos de cerca de dez, para a beira da ravina”, recorda uma
sobrevivente, Dina Pronicheva, citada por Snyder. “Eram obrigadas a deitar-se,
de barriga para baixo, sobre os cadáveres que já jaziam sob elas, esperando
pelos tiros que viria de cima. Depois vinha o grupo seguinte.”
Cerca de 5,5 milhões de judeus morreram durante a Segunda
Guerra. Mas Auschwitz não viria em primeiro lugar, argumenta Snyder. “Uma visão
correcta do Holocausto colocaria no centro da história a operação Reinhardt, o
assassínio dos judeus polacos em 1942”, afirma. “A segunda parte mais
importante do Holocausto é o assassínio em massa por balas na Polónia Oriental
e na União Soviética. No final de 1941, os alemães tinham morto assim um milhão
de judeus. Isso é o equivalente ao número total de judeus mortos em Auschwitz
durante toda a guerra”, escreveu.
Genocídio
Auschwitz tornou-se um campo de extermínio nos últimos anos
da guerra, para acabar sobretudo com os judeus da Europa Ocidental.
Para ali
foram enviados os 438 mil judeus húngaros deportados em massa em 1944, 70 mil
franceses, 60 mil holandeses, 46 mil checos e da Morávia, 27 mil eslovacos, 25
mil belgas, 23 mil alemães e austríacos, 10 mil jugoslavos, 7500 italianos, e
ainda mais 300 mil polacos, além de outras nacionalidades em menor número,
entre as quais portugueses. Não judeus também foram enviados para Auschwitz,
como os ciganos.
E Auschwitz era também um campo de trabalhos forçados, por
isso houve sobreviventes para contar o que lá passaram. Muitos eram da Europa
Ocidental, e influenciaram o desenrolar da visão histórica do que hoje chamamos
Holocausto.
Na Rússia, já não foi assim. “A propaganda soviética
designava os mortos de Auschwitz colectivamente como ‘vítimas do fascismo”, e
apresentava os campos de extermínio como o exemplo extremo de fábricas
capitalistas, onde os trabalhadores eram mortos quando deixavam de ser úteis”,
escreveu no jornal The Guardian o historiador britânico Anthony Beevor, para
defender que o Presidente russo, Vladimir Putin, deveria estar presente em
Auschwitz na comemoração dos 70 anos de libertação do campo (não estará, porque
não foi convidado pela Polónia).
Mas os Aliados também levaram algum tempo a ultrapassar a
atitude de não diferenciação dos judeus como vítimas primordiais dos Nazistas.
“Houve um período em que os exércitos aliados não estavam preparados para lidar
com os sobreviventes judeus do Holocausto. Nem sequer era claro para eles que
os sobreviventes eram sobretudo judeus”, afirmou William Hitchcock, da
Universidade da Virgínia, autor do livro The Bitter Road to Freedom: A New
History of the Liberation of Europe (Simon and Shuster, 2008), numa entrevista
disponível no site http://ww2history.com/.
Não eram vistos como vítimas de genocídio. “O facto de terem
uma identidade judaica não era um princípio organizador: eram encarados como
prisioneiros políticos, polacos, gregos, franceses ou jugoslavos, mas não como
sobreviventes judeus do Holocausto, nem esse termo era usado da forma que o
usamos hoje.”
Apesar de muito se ter passado até então, só em 1961, quando
o julgamento em Israel de Adolf Eichman, o especialista em judeus do regime Nazista
capturado pela Mossad na Argentina, foi transmitido pela televisão para todo o
mundo, é que o Holocausto ganhou as dimensões modernas. Os julgamentos
militares de Nuremberga, logo a seguir à guerra, não tiveram esse efeito.
O desfile de uma centena de testemunhas de acusação contra
um só homem, Eichman, pelo papel que desempenhou na organização da “solução
final”, teve um enorme impacto na consciência pública. “Homens e mulheres foram
testemunhar honradamente. Não eram ‘judeus do gueto’, não eram gente
fracassada; eram pessoas que tinham estado no sítio errado na hora errada”,
afirmou numa entrevista ao jornal israelita Ha’aretz em 2011 a historiadora
Deborah Lipstadt, da Universidade de Emory (EUA).
“O julgamento de Eichman personalizou o Holocausto”,
sublinhou Lipstadt. “Ouviram-se histórias pessoais. Isso mudou tudo.”
fonte: publico.pt/
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